"O fallecido bispo de Vizeu era um caracter forte, uma individualidade bem accentuada. No seu tempo, mais do que nunca, os homens são producto do meio social, que lhes impõe em nome dos interesses, da formidavel auctoridade de toda a gente, e até da polidez que prohíbe a contradicção; elle, porém, foi toda a vida o que exigiam que fossem as suas convicções, o seu modo de sentir, o seu temperamento. Metteram-no no seminário e elle fugiu para os acampamentos, cingiram-no padre, e não o desviaram da vocação de revolucionário, sagraram-no prelado e o prelado foi um estadista liberal; deram-lhe as rendas de uma opulenta diocese, e ficou pobre; cercaram-no de pompas e grandeza, e não deixou de ser um homem do povo. A sua vigorosa personalidade impunha-se, não acceitava imposições.
Porque era forte, era franco, e quando a cortezia se lhe afigurava tibieza ou dissimulação, dispensava-a por importuna. (...) Uma vez foi a Roma. Roma subjuga os espíritos altivos com a auctoridade das tradições seculares, com a magestade do culto universal, e elle era padre. A cupula de Miguel Angelo cobria então uma assembléa pomposa e veneranda; (...) Porém, quando essa assembléa, que dizia representar as crenças dos povos e a inspiração do céu, se prostou humilde para divinisar o barro humano com a infalibilidade do infinito, o bispo de Vizeu ficou de pé, amparado pela energia da convicção, e a sua palavra sonora recusou a homenagem que o papa requeria para não repartir o que devia a Deus. (...)
Feriu interesses, é certo, mas feriu-os desinteressadamente e sacrificando a popularidade ao dever. (...) Foi muito superficial e muito acanhado nos seus intuitos. Reduzir as despezas publicas sem remover as poderosas causas da sua elevação, é um tratamento meramente symptomatico que faz soffrer o enfermo sem o curar. Mas porque não emprehendeu o bispo de Vizeu a cura radical?
(...) E no nosso paiz da indiferença e do egoismo ainda até hoje não houve, desde 1852, uma corrente de opinião, um acto de consciência publica, que armasse um partido ou um governo para commetimentos mais ousados e belliçosos do que cortar um canto de pão escasso, porém mal ganho, dos funcionários publicos, ou fazer com que os agiotas e os empreiteiros só mettam nos cofres do Estado o braço até ao cotovello, em vez de o meterem até ao hombro.
(...) Foi, porém, um ministro honrado e austero. Affeiçoado ás melhores práticas governativas e ás mais liberais. Nos tempos que vão correndo, quasi não ha homem político a quem se possa tocar mais levantado louvor. São pequenas todas as figuras da scena política, porque tambem a scena é baixa; o que ainda se lhes pode exigir é que sejam acceiadas. (...)
Engrandeceu-se sem baixezas, mandou sem orgulho, e a sua carreira tendo passado pelos mais altos cargos da egreja e do estado, acabou como tinha começado, na pobreza.
O único capital que juntou foi a estima e o respeito que lhe tem rodeado a sepultura de sentidas homenagens que lhe hão de perpetuar o nome."
ANTÓNIO ENNES
In, “Album de Vizeu” - Ilustrado com os retratos de - Viriato, João de Barros, D. Duarte, João Mendes, Bispo de Vizeu e estampas da cidade – cava de Viriato, Abravezes, S. Francisco d’Orgens, Praça dois de Maio, Sé, etc.
Almanaque com textos de diversas colaboradoras e colaboradores, à volta de Viseu, de viseenses ilustres e ainda pequenos contos, prosas e versos de motivos vários (recolha e organização de Camillo Castelo Branco ?), Typographia Universal, Rua do Almada, 347, Porto – 1884
Nota:
NASCEU NA GRANJA DE ALIJÓ EM 18-2-1808. ELEITO DEPUTADO EM 1842. NOMEADO ENFERMEIRO-MÓR DO HOSPITAL DE S. JOSÉ EM 1861. APRESENTADO BISPO DE VIZEU EM JULHO DE 1862. ENTRADA SOLEMNE NESTA CIDADE EM 29-1-1863. MINISTRO DO REINO EM 1868 E EM 1870. FALECEU POBRE NO PAÇO DE FONTELO EM 5-2-1882.
Estátua no Jardim de Santa Cristina, da autoria de António Teixeira Lopes, erigida por subscrição popular e inaugurada em 18 de Fevereiro de 1911.