EDITORIAL


Quando eu me poupe a falar,
Aperta-me a garganta e obriga-me a gritar!
José Régio


Aqui o "Acordo Ortográfico" vale ZERO!
Reparos ou sugestões são bem aceites mas devem ser apresentadas pessoalmente ao autor.

20150903

Viriato foi à "Feira de São Mateus"...



Viriato foi à "Feira de São Mateus", perdão "Feira BIC" e ouviu as queixas de feirantes e visitantes

Estava ali há 75 anos, quietinho, no alto de pedregulho a servir de pedestal,tal e qual como viera ao mundo pelas mãos de Mariano Benlliure, o escultor espanhol amigo de Almeida Moreira, que teve como modelo José Madeira, atleta invulgar no lançamento do peso, do martelo e do dardo e campeão de lançamento do disco, o que faria dele, efectivamente, um bom guerrilheiro no manejo das armas lusitanas (dardo ou lança, funda e espada), quando um jornal voou e se foi espetar na falcata último modelo (é frequentemente roubada por coleccionadores de relíquias históricas). Era o "Jornal da Feira " dedicado ao dia de Viriato, "Herói da cidade de Viseu". Não conseguiu ler tudo, mas tirou o sentido pelas imagens, como fazia com a escrita pictográfica da "língua" lusitana, de origem próxima dos Celtas.
"Herói" está certo - pensou - mas da cidade de Viseu por quê, se eu nunca andei por aqui em vida?Que me lembre, andei lá mais para o sul, na actual Andaluzia, onde travei as principais batalhas contra os romanos, mas como já passaram 2.150 anos, posso estar confundido. Chegámos a fazer incursões até Segóvia e ao Ebro.
Agora, "Herói mítico"? Vão chamar "mito" à vossa avó! Lendário, admito, já que inventaram muita coisa a meu respeito. Mas eu existi, porra!, apesar desse Armando Coelho, o arqueólogo e catedrático jubilado que convidaram para vir falar de mim, tenha começado por dizer em voz alta que não sabia se Viriato se chamava assim ou se era uma função. Diz ele que Viriato vem do radical "vis" (força) que dá o agente "vir" (varão, o que tem força), que seria o mesmo radical de Viseu (a cidade dos guerreiros, dos fortes). Aqui a assistência interrompeu o orador com uma salva de palmas. Não percebi porquê, dado que eram todos velhos e enfezados. Função era a tia dele. Outro historiador e arqueólogo, o espanhol Maurício Pastor Muñoz, no seu livro "Viriato - A Luta pela Liberdade", prefere derivar o meu nome de "viria", uma abreviatura ibérica do celta "viriola" que significa "pulseira".
Este tipo que é Pastor de nome, também me chama de pastor, mas na acepção de "rico proprietário de gado" e reconhece que "actualmente, quase todos os historiadores rejeitam a tese de um Viriato nascido e criado nas montanhas", dado que as obras de autores antigos, me apresentam como "um homem sóbrio, enérgico, justo e fiel à palavra dada (...) "excelente estratega militar", pelo que não lhe restam dúvidas de que eu era "um verdadeiro político, um indiscutível chefe militar dos lusitanos e defensor da sua liberdade, e não de um rude pastor das montanhas." Foi o historiador Schulten que inventou essa do pastor. Mas essa mitificação pegou de tal modo que em Viseu até criaram uma enorme cerca de arame, em frente à minha estátua, para dar a ideia de redil. Não vejo ovelhas nem carneiros, mas se calhar foram degolados pelos soldados do novo império troikano. Sorte a vossa. Os romanos eram uma espécie de Estado Islâmico da época, só que um pouco mais a armar ao fino. Em vez de fundamentalistas religiosos tinham filósofos que justificavam a escravatura. Os seus generais mandavam degolar os povos ibéricos, saquevam-lhes as aldeias e escravizavam-nos para trabalhar nas minas e na agricultura, por vezes até à morte. Chamavam-nos de "bárbaros", mas em Roma havia mais escravos do que homens livres. Muitos eram "exportados" da Lusitânia, o comércio (por grosso e a retalho) mais lucrativo no século II. Nós tinhamos escravos de guerra, saqueavamos as tribos inimigas, enquanto bandos de salteadores ou guerrilheiros, mas eles tinham escravos por dívidas e por nascimento. Seviliano vendeu 9.500 escravos e Pompeu, que lutou contra Sertório, vendeu a mercadores os habitantes de 876 núcleos populacionais. Na batalha do Douro, os romanos mataram 50 mil habitantes e fizeram 6 mil prisioneiros. Dídio mandou degolar todos os presos, homens mulheres e crianças. Durante a campanha contra Numância cortaram as mãos a 400 jovens na cidade de Lutia (Carlos Consiglieri e Marília Abel, na obra "Os Lusitanos no Contexto Peninsular").
Foi por estas e por outras que as tribos lusitanas me elegeram chefe na sua luta de guerrilhas contra os cruéis invasores romanos.
Costumes estranhos os de "Vissaium". Vi chegarem famílias inteiras para entrar no redil da Feira e voltar para trás por causa do preço da entrada. De facto, parece que 5 sestércios é demais para se ir divertir com os filhos ou comer um caldo de cebola. E contaram-me que durante dois dias seguidos se pagava sete sestércios e meio. Os vendedores e artesãos queixavam-se de que os que entravam, depois de gastarem o dinheiro nas entradas já não compravam mais nada, e mal acabava a música iam logo para casa, antes que os filhos pedissem mais uma volta de carrinhos ou uma fartura (eu prefiro o pão de bolota com a cerveja da Lusitânia).
Pastor Muñoz disse numa entrevista que eu, Viriato, fui assassinado por três companheiros, não por eles serem traidores, mas sim por eu ter traído os lusitanos a troco de terras para mim, depois de ter aceite o título de Amigo de Roma, dado pelo Senado, que mais tarde mo tiraria. Nego isso, veementemente! É o mesmo que dizerem que o grego Tsipras traíu o Siryza, quando a verdade é que foram os dirigentes alemães e os seus lacaios europeus a encostarem o governo grego à parede, com a chantagem da saída do Euro. Também os romanos já tinham traído os lusitanos que assinaram o pacto de paz com o pretor Galba, que lhes prometera terras, degolando 9 mil e escravizando 20 mil. Escapei eu e uns poucos. Durante quase uma década, tivemos muitas vitórias sobre os romanos, mas o povo e os guerrilheiros já estávamos cansados de guerras e de massacres. Precisávamos de ganhar tempo. O meu erro foi ter esquecido a História e confiado nos donos do Império. Erro fatal!

Carlos Vieira e Castro
Jornal "Via Rápida", edição de 3 de Setembro de 2015